






























Fotos: Maurício Froldi
Paisagem em questão
Felipe Scovino
Investigar os diversos sentidos sobre paisagem é o motivo condutor da pesquisa de Marcella Moraes. Seus trabalhos giram em torno de um conceito criado pela própria artista – paisagens bioindicadoras – que visa não só apresentar, por meio de diferentes suportes, a degradação do meio ambiente, mas particularmente os “indicadores da mutação climática” e “a qualidade ambiental de determinada área”.
O estudo da paisagem pelos artistas é um fenômeno constante. Nos séculos XV e XVI, a paisagem era ao mesmo tempo ameaçadora, encantadora e fonte de riquezas; ela também dividia o que os exploradores escravocratas nomeavam de “civilização” e “barbárie”. Era comum, em produções como a do artista holandês Frans Post, a aparição de uma natureza exuberante ganhando destaque na tela ao lado de indígenas seminus, revelando um traço de distanciamento e alteridade dos povos originários frente às riquezas e conhecimento científicos das metrópoles. Já no Romantismo, a paisagem revela-se em êxtase do indivíduo frente a natureza abismal. Entre fins do século XIX e início do século XX, a paisagem comporta signos como a fumaça, o trilho do trem e o barulho de metais construindo o horizonte moderno. A natureza perde espaço para a exploração da terra.
O trabalho de Marcella navega por essas transformações, apropriações, mudanças, desaparecimentos e tragédias. Dialogando, singularmente, com a biologia e a cartografia, suas colagens, ações e objetos voltam se para o estudo associativo e acumulativo de tempos e territórios. Interessa a artista exibir, refletir e criticar as mudanças climáticas que distintos ecossistemas vêm atravessando. Especialmente, como alerta a artista, nos últimos 4 anos vivemos uma aceleração de grandes perdas no campo ambiental brasileiro. Como esta é a exposição de maior fôlego realizada pela artista, podemos ver seu interesse por distintos aspectos acerca da paisagem ao longo da sua trajetória. A série Casópolis retrata casas que são erguidas por aquilo que as desenha ou projeta: as réguas de gabarito. A utopia inscrita nas linhas modernistas de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, instaladas em pleno descampado do Planalto Central, alimentou a crença de que a nova capital resumiria o espírito de uma época que iria solucionar os contrastes e antagonismos brasileiros, redimindo nossa herança de desigualdades. A ruptura do golpe de 1964 reduziu essa fantasia a pó. Em “Tristes trópicos”, Lévi-Strauss comenta que as cidades do Novo Mundo transmitem a sensação de passar da barbárie à decrepitude sem ter conhecido a civilização. Esse amálgama de ilusão, fragilidade e violência que está nas obras iniciais de Marcella também é reportado, como verão, quando suas obras se voltam para o panorama contemporâneo de devastação do meio ambiente no país.
Suas investigações sobre paisagem e transformação perpassam inclusive o universo dos games. Em Campado, as colagens feitas a partir de estudos de simulação virtual de paisagens encontradas em jogos de videogame assim como de imagens naturais e recortes de atlas escolares publicados no Brasil, evidenciam um ecossistema incerto, mas tendenciosamente trágico. Ficção, projeção e realidade se confundem ao ponto em que o universo lúdico dos jogos se transforma em uma projeção possível do que é real. O ambiente ficcionalizado da destruição convive com o Antropoceno. Esse termo, cunhado pelo cientista Paul Crutzen em meados dos anos 1990, foi criado para levar em consideração o impacto da acelerada acumulação de gases de efeito estufa sobre o clima e a biodiversidade e, da mesma forma, dos danos irreversíveis causados pelo consumo excessivo de recursos naturais. Estamos, sem dúvida, testemunhando um tempo de destruição implacável dos nossos biomas, o que é resultado de uma fé ingênua no progresso, de uma ideologia consumista e de poderosos lobbies econômicos.
Já em Bioma Brasiliana, os atlas escolares recortados retornam como únicos protagonistas. Sobrepostos e colados sobre o papel, configuram-se como indicadores de tensões. Em meio a construção de uma paisagem montanhosa, com quedas d’água e vegetação rica e vasta, os pedaços de atlas (publicados em período recente) são também uma maneira de expor demarcações e índices gráficos que apontam a devastação rápida e intensa dos biomas brasileiros. Há uma atmosfera híbrida nessas colagens: se por um lado, tem-se a apresentação recortada de imagens belas e convidativas, por outro o gesto do corte problematiza a evidência de signos como dispersão, fratura e disseminação instantânea. O corte é também a ação do extermínio.
Mapas Ambientais e Corpo de Frutificação trazem experiências mais imersivas com a natureza. São ações, cada uma com suas especificidades, que se voltam para um contato mais direto da artista com a paisagem e sua exterioridade. Na primeira série, líquens são descobertos por Marcella em deambulações e ao seu lado é colocado o pedaço de um mapa do Brasil. A forma do líquen é associada a um estudo cartográfico. Como a artista aponta, esses pequenos seres “podem ser potenciais bioindicadores de impactos ambientais através da sua presença ou ausência”. Em Corpo de Frutificação, Marcella incorpora um devir vegetal. As fotografias que compõem a série são registro de ações pelas florestas do Rio de Janeiro, nas quais a artista identifica troncos ocos que possuem perfurações. Adentrado esses corpos vegetais, Marcella deixa vazar pedaços de seu corpo por essas frestas. Sua boca preenche uma abertura ou intervalo da árvore e o mesmo acontece com uma de suas orelhas e nariz. Um desejo de vida e afirmação de presença preenche essas árvores-corpos.
Por fim, a exposição é um grande inventário multifacetado sobre as articulações entre artes visuais, ciências naturais e geológicas e, sem dúvida, política. Sem qualquer traço panfletário, as obras de Marcella Moraes, de modo singelo, mas sem perder a necessária crueza que o assunto exige, refletem sobre o aceleramento, em particular em anos recentes, das mudanças ambientais provocadas pela ganância e desprezo humano.
Exposição paisagens bioindicadoras, da artista Marcella Moraes (Rio de Janeiro-RJ | Vive e trabalha no Rio de Janeiro-RJ) No MARP - Museu de Arte de Ribeirão Preto Pedro Manuel-Gismondi, de 28/01 a 04/03/2023